quinta-feira, 30 de maio de 2013

Breve histórico de Scarlett Ellanaren


Árvores altas e copas densas; troncos, folhas e frutos eternamente dourados e vermelhos, como o outono que nunca acaba, como o pôr-do-sol. Um clima nunca quente, jamais frio. Seu lar foi uma floresta de belezas e amenidades, um mundo paradisíaco, seu retrato de infância.

O templo era uma estrutura antiga que se fundia com a exuberante flora. Árvores cresciam em salões; o chão cedia às poderosas raízes, enquanto pétalas, flores e frutos perfumavam os aposentos.

Scarlett fora a única nascida ali. Sua mãe e seu grupo de companheiros pertenciam ao mundo de fora, o mundo da fome e da morte, o mundo das mentiras e traições, o mundo da guerra.

Eram clérigos e magos, estudiosos das artes ocultas, alicerces de uma aliança cujos elos deveriam ser inseparáveis. A floresta e seu templo guardavam segredos, mas a criança Scarlett, embora dotada de uma perigosa e precoce curiosidade, nunca teve muitas pistas das reais atividades naquele sítio.

Sua mãe era aquela a quem chamavam de Oráculo. Scarlett nunca conheceu seu verdadeiro nome e teve poucos vislumbres acerca da pessoa por trás do título.  Os habitantes do templo eram reverentes e muitas vezes temerosos em relação à autoridade.

O Oráculo.

Scarlett era tratada com imenso afeto por uns e evidente desprezo por outros.  Tanto por palavras veladas quanto por silêncios constrangedores, descobriu que seu nascimento originou-se de uma união forçada. Naquela época, pouco compreendia além do fato que seu pai machucara a sua mãe e era um homem sórdido. Naturalmente, era proibida qualquer menção ao assunto.

Os anos passaram e apesar da fria distância do Oráculo, Scarlett cresceu feliz em seu pequeno paraíso outonal. Foi rigidamente instruída e educada, apaixonando-se por livros assim que aprendeu a decifrar as primeiras palavras.

Certo dia, sua mãe pediu-lhe que fosse coletar algumas plantas de que precisava. A ordem era incomum, mas ninguém questionava o Oráculo. Scarlett, no entanto, passou a tarde em uma jornada vã.  Jamais encontrou as ervas.  Não era permitido passar as noites longe do templo, por isso voltou assim que os últimos raios de sol deixaram a floresta.

Enquanto pensava nas possíveis repreendas que receberia por chegar de mãos vazias, Scarlett notou que a trilha da mata que tanto conhecia parecia dar em lugar algum. Refez o caminho por diversas vezes até constatar que andava em círculos. O desespero a inundou, pois não conhecia o sentimento de estar perdida. Gritou por ajuda. Ninguém respondeu.

Ninguém jamais respondeu.

Três luas brilharam no céu antes que a floresta se abrisse para ela novamente. Os caminhos estavam mudados, mas não se pareciam com as vias que se acostumara a usar durante a vida toda. Cansada de permanecer no mesmo espaço por dias, seguiu em frente.

A vegetação e a fauna mudavam à medida que Scarlett se movia. Começou a sentir fome, pois as frutíferas árvores douradas, tão comuns em seu lar, eram cada vez mais raras. Experimentava emoções conflitantes: por um lado, tinha medo; por outro, estava encantada e ávida pelos novos ares, cheiros, cores e sensações.

A excitação com o novo mundo, todavia, cegou-a para os perigos que o acompanhavam. Quando o tempo chegou, teve fome, sede e apavorou-se com os sons de bestas desconhecidas caçando.

Chorou. Tudo o que queria era voltar para casa.  

A desolação quebrou sua vontade e pesou seu corpo. Após dias de caminhada, já sedenta, faminta e exausta, entregou-se ao cansaço, caindo onde estava.

Scarlett despertou, horas depois, em uma estrada. Era conduzida por um veículo peculiar, que futuramente viria a conhecer como “carruagem”. Havia um passageiro junto dela, um homem jovem e moreno, que carregava consigo bolsas que pareciam muito pesadas. Ele fez algumas perguntas à menina e disse que estava levando-a para um lugar seguro.

Um lugar seguro. Pensou. Sua ingenuidade jamais questionou tais palavras, especialmente porque foram ditas de forma tão gentil. Seu desejo mais pulsante era voltar para casa, mas um refúgio naquele momento seria recebido de bom grado. Ademais, ainda não compreendia a razão para a sua desventura. Teria sido banida por sua mãe? A busca pelas plantas seria um teste? Uma prova de sua dignidade?

O jovem e sua carruagem pararam em frente a um castelo de altas muralhas e aspecto acinzentado. A região era erma, com pouca iluminação. Scarlett não gostava do lugar, mas não viu razão para correr e nem teria forças para tanto.

O anfitrião era um homem de meia-idade, grisalho, muito branco, de feições fortes e nenhuma barba. Era polido e tinha os gestos comedidos. Sua fria contenção fez com que a menina se lembrasse de sua própria mãe.

O rapaz empurrou a meio-elfa e as bolsas que trouxera ao senhor do lugar. Após um breve diálogo, o moço virou-se em direção aos portões: estava partindo, para o desespero de Scarlett. Ela pensou em alcançá-lo, mas a entrada foi fechada com um estrondo.

Entre no castelo. Disse o anfitrião, sem expressão alguma.

Estava exausta e faminta. A água esquisita e a ração que seu condutor lhe oferecera não foram suficientes para aplacar suas necessidades. Precisava de água potável, comida e descanso. Naquele momento, trocaria sua própria vida pela satisfação dessas urgências e não discutiu com o homem. Aquela era a sua melhor chance de não morrer por inanição.

Devorou o que lhe foi ofertado: um jantar que, apesar de não se parecer com nada que conhecia (afinal, frangos não são criados em florestas), aparentemente não estava envenenado. Após a refeição, deixou-se cair na cama que lhe foi oferecida e dormiu até o dia seguinte.

O senhor do castelo não demorou a revelar suas reais intenções. Tão logo pareceu recuperada, Scarlett foi conduzida às masmorras subterrâneas. Acostumada à liberdade da floresta e ao contato com a natureza, a prisão de pedra era quase tão ruim quanto a morte.

Lá, deparou-se com seis crianças de olhos fundos e roupas esfarrapadas. Em sua prisão, descobriu que o homem, conhecido por Lorde Aldaren ou simplesmente “mestre”, aprisionava pessoas que demonstravam ter aptidões mágicas. Ele munia capangas com dispositivos de reconhecimento e aumentava gradativamente sua coleção.

              ***

Os anos seguintes foram um amálgama de tortura, sofrimento e aprendizado. Scarlett conheceu todas as etapas a que os prisioneiros de Lorde Aldaren poderiam ser submetidos.

Durante a primeira fase, os cativos tinham de passar por testes físicos e medição de seu potencial. Os que pereciam durante a experimentação eram considerados fracos e indignos. Os não satisfatórios, mas que porventura sobreviviam, tinham um fardo pior que a morte, pois tornavam-se cobaias dos laboratórios inferiores.

Os suficientemente resistentes e talentosos passavam à próxima etapa, tornando-se discípulos do “Mestre Aldaren”. Os rebeldes e inaptos voltavam às masmorras. Os melhores caíam em suas graças.

Scarlett cumpriu os requisitos para ser considerada aprendiz do mago, mas seu coração nunca se dobrou à vontade do tirano. Ela aproveitava a escuridão e os momentos de silêncio para investigar passagens e descobrir saídas. Certa vez teve um plano de fuga frustrado pela traição dos próprios companheiros. Compreendeu, finalmente, que não poderia haver espaço para amizade e confiança se quisesse sobreviver. Aldaren já havia imposto seu poder às suas ovelhas e era forte demais para ser resistido.

Nas semanas em que esteve enclausurada na cela mais profunda do castelo, o castigo pela tentativa de escapar, Scarlett teve a chance de se entregar à morte, mas decidiu seguir outro caminho. Prometeu a si mesma que jamais olharia para trás: deixaria no passado a menina da floresta que fora um dia. 


A representação de Scarlett nos anos que passou como cativa no castelo.

Quando deixou a escuridão da fria cela, já não via as coisas como antes. Observava e recebia o ambiente como uma recém-nascida, sedenta pelo mundo. Lorde Aldaren ganhou uma aluna obsessiva pelo aprendizado, com poucos escrúpulos e completa submissão.

Muitas estações foram deixadas para trás. Scarlett aprendera a linguagem das  estrelas, descobrira segredos ensandecedores, conhecera a ciência, as histórias, as lendas, as verdades e as mentiras por trás delas e suas razões. Essa obsessão por conhecimento e seu perfeccionismo trouxeram-na cada vez mais para perto de seu mestre.

Aldaren decidiu que já era hora de Scarlett ser iniciada. Ela possuía todos os conhecimentos necessários e estava cada dia mais segura do próprio poder. Sete dias antes do ritual, no entanto, Lorde Aldaren  recebeu uma visita inesperada. Nos corredores, a moça ouviu a palavra “demonologista” aos sussurros. Teve o ímpeto de espionar a conversa. A excessiva autoconfiança que havia adquirido ao longo do tempo nada fez para refreá-la.

Scarlett esgueirou-se por uma das passagens do castelo que descobrira no passado, quando tinha o hábito de buscar vias secretas e rotas de fuga. Era uma sala escondida que dava exatamente para o aposento de conferências. Deparou-se com uma figura peculiar: parecia-se com um elfo, mas sua pele era escura, seus cabelos eram prateados e seus olhos brilhavam com uma malícia palpável. Observou seu mestre. Os anos de profundo estudo sobre suas feições e modos  revelaram uma verdade chocante: Lorde Aldaren estava com medo. Tinha pavor do demonologista.

Scarlett esforçava-se para ouvir o teor da conversa, mas os homens estavam muito distantes de sua posição. Percebia, no entanto, que as palavras eram ameaças. Elas aumentavam em intensidade a cada minuto, até que a pressão fez Aldaren agir. Houve um estrondo e o estranho encontrou-se em meio às chamas conjuradas pelo anfitrião. O elfo escuro grunhiu imprecações e dissipou a magia, sem muito esforço.

O júbilo que Scarlett sentiu ao notar a expressão de desespero em seu senhor durou poucos segundos. Um fogo negro surgiu do chão, para abraçar a figura outrora intocável, inatingível e indestrutível. Ali, seu mestre não era nada além de uma tocha humana, agonizante, capaz de berrar tão alto quanto as vítimas de suas torturas.

A meio-elfa, sem tempo para comemorar qualquer vitória e com um senso de urgência pulsante, deixou o lugar, temerosa por sua vida. Foi quando o demonologista materializou-se em sua frente, portando uma mão humana com esquisita naturalidade.

Milady, poderia me dizer onde fica a sala de tesouros? Lorde Aldaren teve a bondade de aceitar abrir a porta para mim – Indicou a mão. -  mas o restante dele está um tanto ocupado no momento.

Scarlett passou as coordenadas da sala, incrédula, apenas para ver o elfo acenando e sorrindo antes de se dissipar em fumaça.

***

Aquele foi um longo dia. Tão logo constatou que Lorde Aldaren consistia meramente em uma pilha de cinzas, Scarlett tratou de libertar os prisioneiros e intimidar os que ainda eram leais à autoridade do mestre. Olhou os portões abertos, um convite à tão sonhada liberdade...

Então virou-se para o castelo e trancou o portão por dentro. Havia uma biblioteca inteira para ser estudada.


Scarlett, a bruxa.


Observações e Curiosidades:

1) A mãe de Scarlett detestava a cor dos cabelos da filha, que eram negros como a penugem dos corvos (provavelmente porque a menina herdou os cabelos do pai). Por isso, fazia com que as aias pintassem constantemente os fios da menina com uma tonalidade  avermelhada

2)  Com o tempo, Scarlett passou a acreditar na teoria do banimento por parte de sua mãe. Ela sequer descartou a possibilidade de ter sido enviada diretamente para Aldaren, embora ele nada tenha mencionado a respeito. Todavia, essa pode não ser a realidade dos fatos. Existe a chance de que o Oráculo tenha afastado a filha para protegê-la. Talvez tenha previsto uma invasão inevitável. Ou quem sabe tenha desejado defender a filha de si mesma e de seus companheiros no templo. Afinal, eu nunca disse que eles eram os “mocinhos” da estória.

3) Scarlett anulou-se como pessoa para poder  viver sob as ordens de Aldaren sem enlouquecer. Parte do comportamento assumido durante esses anos, no entanto, passou a fazer parte da sua real personalidade.

4) Scarlett quase realizou o pacto estelar, mas a morte de seu senhor a impediu. Depois dos últimos acontecimentos, ela deixou os conhecimentos astrológicos de lado, pois, internamente, repudiava tudo o que vinha do homem. A Demonologia, por outro lado, seduziu-a por inteiro, tanto com vislumbres de tratados sobre o assunto durante seus estudos quanto com a demonstração, em primeira mão, do poderoso drow.

5) Dizem que seu nome lhe foi dado pela aia Dora, humana já de certa idade que trabalhava no templo. Ela foi responsável por grande parte dos cuidados com a menina e tem, provavelmente, mais importância para Scarlett que sua própria mãe.

6)  Apesar de guardar decepções e amarguras em relação ao Oráculo, intimamente guarda o desejo de retornar para a floresta dourada.

7) Nas fases principais de sua existência, ou Scarlett viveu em uma floresta longínqua ou esteve presa no castelo de um bruxo insano. Por isso, seu convívio numa sociedade normal é basicamente nenhum. Tudo o que sabe foi fruto de pesada instrução e de exaustiva leitura. Dessa forma, não faz ideia do que é ser meio-elfa numa sociedade humana, já que sua convivência realizou-se em microcosmos fechados e nunca houve muito alarde sobre sua miscigenação.

8) Scarlett, após certificar-se de que o drow já havia partido, explorou a propriedade para fazer uma avaliação acerca dos itens levados e deixados. Concluiu que o drow levara tudo o que existia na sala de tesouros. Ele também não deixou a biblioteca intocada. Scarlett notou a falta do “livro proibido”, que era guardado com o zelo mais exagerado por Aldaren.


9) Após dias de frenética leitura na biblioteca, sem comer ou dormir, Scarlett decidiu que era hora de deixar o castelo. Sua intuição lhe dizia que, em pouco tempo, a fortaleza não seria mais um refúgio seguro.


Créditos

Imagens tiradas de: 


3 comentários:

  1. Quase fez o pacto estelar .. tsc! Por pouco!!! hahahahaha

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  2. Muito bom!
    Milady, poderia me dizer onde fica a sala de tesouros? Lorde Aldaren teve a bondade de aceitar abrir a porta para mim – Indicou a mão. - mas o restante dele está um tanto ocupado no momento....

    O Drow me ganhou nessa, achei ótimo ahuahuauhauhauhau

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