Breve
histórico de Scarlett Ellanaren
Árvores
altas e copas densas; troncos, folhas e frutos eternamente dourados e
vermelhos, como o outono que nunca acaba, como o pôr-do-sol. Um clima nunca
quente, jamais frio. Seu lar foi uma floresta de belezas e amenidades, um mundo
paradisíaco, seu retrato de infância.
O
templo era uma estrutura antiga que se fundia com a exuberante flora. Árvores
cresciam em salões; o chão cedia às poderosas raízes, enquanto pétalas, flores
e frutos perfumavam os aposentos.
Scarlett
fora a única nascida ali. Sua mãe e seu grupo de companheiros pertenciam ao
mundo de fora, o mundo da fome e da morte, o mundo das mentiras e traições, o
mundo da guerra.
Eram
clérigos e magos, estudiosos das artes ocultas, alicerces de uma aliança cujos
elos deveriam ser inseparáveis. A floresta e seu templo guardavam segredos, mas
a criança Scarlett, embora dotada de uma perigosa e precoce curiosidade, nunca
teve muitas pistas das reais atividades naquele sítio.
Sua
mãe era aquela a quem chamavam de Oráculo. Scarlett nunca conheceu seu
verdadeiro nome e teve poucos vislumbres acerca da pessoa por trás do
título. Os habitantes do templo eram
reverentes e muitas vezes temerosos em relação à autoridade.
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O Oráculo. |
Scarlett
era tratada com imenso afeto por uns e evidente desprezo por outros. Tanto por palavras veladas quanto por
silêncios constrangedores, descobriu que seu nascimento originou-se de uma
união forçada. Naquela época, pouco compreendia além do fato que seu pai
machucara a sua mãe e era um homem sórdido. Naturalmente, era proibida qualquer
menção ao assunto.
Os
anos passaram e apesar da fria distância do Oráculo, Scarlett cresceu feliz em
seu pequeno paraíso outonal. Foi rigidamente instruída e educada,
apaixonando-se por livros assim que aprendeu a decifrar as primeiras palavras.
Certo
dia, sua mãe pediu-lhe que fosse coletar algumas plantas de que precisava. A
ordem era incomum, mas ninguém questionava o Oráculo. Scarlett, no entanto,
passou a tarde em uma jornada vã. Jamais
encontrou as ervas. Não era permitido
passar as noites longe do templo, por isso voltou assim que os últimos raios de
sol deixaram a floresta.
Enquanto
pensava nas possíveis repreendas que receberia por chegar de mãos vazias,
Scarlett notou que a trilha da mata que tanto conhecia parecia dar em lugar
algum. Refez o caminho por diversas vezes até constatar que andava em círculos.
O desespero a inundou, pois não conhecia o sentimento de estar perdida. Gritou
por ajuda. Ninguém respondeu.
Ninguém
jamais respondeu.
Três
luas brilharam no céu antes que a floresta se abrisse para ela novamente. Os
caminhos estavam mudados, mas não se pareciam com as vias que se acostumara a
usar durante a vida toda. Cansada de permanecer no mesmo espaço por dias,
seguiu em frente.
A
vegetação e a fauna mudavam à medida que Scarlett se movia. Começou a sentir
fome, pois as frutíferas árvores douradas, tão comuns em seu lar, eram cada vez
mais raras. Experimentava emoções conflitantes: por um lado, tinha medo; por
outro, estava encantada e ávida pelos novos ares, cheiros, cores e sensações.
A
excitação com o novo mundo, todavia, cegou-a para os perigos que o
acompanhavam. Quando o tempo chegou, teve fome, sede e apavorou-se com os sons de
bestas desconhecidas caçando.
Chorou.
Tudo o que queria era voltar para casa.
A
desolação quebrou sua vontade e pesou seu corpo. Após dias de caminhada, já
sedenta, faminta e exausta, entregou-se ao cansaço, caindo onde estava.
Scarlett
despertou, horas depois, em uma estrada. Era conduzida por um veículo peculiar,
que futuramente viria a conhecer como “carruagem”. Havia um passageiro junto
dela, um homem jovem e moreno, que carregava consigo bolsas que pareciam muito
pesadas. Ele fez algumas perguntas à menina e disse que estava levando-a para
um lugar seguro.
Um lugar seguro. Pensou.
Sua ingenuidade jamais questionou tais palavras, especialmente porque foram
ditas de forma tão gentil. Seu desejo mais pulsante era voltar para casa, mas
um refúgio naquele momento seria recebido de bom grado. Ademais, ainda não
compreendia a razão para a sua desventura. Teria sido banida por sua mãe? A
busca pelas plantas seria um teste? Uma prova de sua dignidade?
O
jovem e sua carruagem pararam em frente a um castelo de altas muralhas e
aspecto acinzentado. A região era erma, com pouca iluminação. Scarlett não
gostava do lugar, mas não viu razão para correr e nem teria forças para tanto.
O
anfitrião era um homem de meia-idade, grisalho, muito branco, de feições fortes
e nenhuma barba. Era polido e tinha os gestos comedidos. Sua fria contenção fez
com que a menina se lembrasse de sua própria mãe.
O
rapaz empurrou a meio-elfa e as bolsas que trouxera ao senhor do lugar. Após um
breve diálogo, o moço virou-se em direção aos portões: estava partindo, para o
desespero de Scarlett. Ela pensou em alcançá-lo, mas a entrada foi fechada com
um estrondo.
Entre no castelo.
Disse o anfitrião, sem expressão alguma.
Estava
exausta e faminta. A água esquisita e a ração que seu condutor lhe oferecera
não foram suficientes para aplacar suas necessidades. Precisava de água
potável, comida e descanso. Naquele momento, trocaria sua própria vida pela
satisfação dessas urgências e não discutiu com o homem. Aquela era a sua melhor
chance de não morrer por inanição.
Devorou
o que lhe foi ofertado: um jantar que, apesar de não se parecer com nada que
conhecia (afinal, frangos não são criados em florestas), aparentemente não
estava envenenado. Após a refeição, deixou-se cair na cama que lhe foi
oferecida e dormiu até o dia seguinte.
O
senhor do castelo não demorou a revelar suas reais intenções. Tão logo pareceu
recuperada, Scarlett foi conduzida às masmorras subterrâneas. Acostumada à
liberdade da floresta e ao contato com a natureza, a prisão de pedra era quase
tão ruim quanto a morte.
Lá,
deparou-se com seis crianças de olhos fundos e roupas esfarrapadas. Em sua
prisão, descobriu que o homem, conhecido por Lorde Aldaren ou simplesmente
“mestre”, aprisionava pessoas que demonstravam ter aptidões mágicas. Ele munia
capangas com dispositivos de reconhecimento e aumentava gradativamente sua
coleção.
***
Os
anos seguintes foram um amálgama de tortura, sofrimento e aprendizado. Scarlett
conheceu todas as etapas a que os prisioneiros de Lorde Aldaren poderiam ser
submetidos.
Durante
a primeira fase, os cativos tinham de passar por testes físicos e medição de
seu potencial. Os que pereciam durante a experimentação eram considerados fracos
e indignos. Os não satisfatórios, mas que porventura sobreviviam, tinham um
fardo pior que a morte, pois tornavam-se cobaias dos laboratórios inferiores.
Os
suficientemente resistentes e talentosos passavam à próxima etapa, tornando-se
discípulos do “Mestre Aldaren”. Os rebeldes e inaptos voltavam às masmorras. Os
melhores caíam em suas graças.
Scarlett
cumpriu os requisitos para ser considerada aprendiz do mago, mas seu coração
nunca se dobrou à vontade do tirano. Ela aproveitava a escuridão e os momentos
de silêncio para investigar passagens e descobrir saídas. Certa vez teve um
plano de fuga frustrado pela traição dos próprios companheiros. Compreendeu,
finalmente, que não poderia haver espaço para amizade e confiança se quisesse
sobreviver. Aldaren já havia imposto seu poder às suas ovelhas e era forte
demais para ser resistido.
Nas
semanas em que esteve enclausurada na cela mais profunda do castelo, o castigo
pela tentativa de escapar, Scarlett teve a chance de se entregar à morte, mas
decidiu seguir outro caminho. Prometeu a si mesma que jamais olharia para trás:
deixaria no passado a menina da floresta que fora um dia.
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A representação de Scarlett nos anos que passou como cativa no castelo. |
Quando
deixou a escuridão da fria cela, já não via as coisas como antes. Observava e
recebia o ambiente como uma recém-nascida, sedenta pelo mundo. Lorde Aldaren ganhou
uma aluna obsessiva pelo aprendizado, com poucos escrúpulos e completa
submissão.
Muitas
estações foram deixadas para trás. Scarlett aprendera a linguagem das estrelas, descobrira segredos ensandecedores,
conhecera a ciência, as histórias, as lendas, as verdades e as mentiras por
trás delas e suas razões. Essa obsessão por conhecimento e seu perfeccionismo
trouxeram-na cada vez mais para perto de seu mestre.
Aldaren
decidiu que já era hora de Scarlett ser iniciada. Ela possuía todos os
conhecimentos necessários e estava cada dia mais segura do próprio poder. Sete
dias antes do ritual, no entanto, Lorde Aldaren
recebeu uma visita inesperada. Nos corredores, a moça ouviu a palavra
“demonologista” aos sussurros. Teve o ímpeto de espionar a conversa. A
excessiva autoconfiança que havia adquirido ao longo do tempo nada fez para
refreá-la.
Scarlett
esgueirou-se por uma das passagens do castelo que descobrira no passado, quando
tinha o hábito de buscar vias secretas e rotas de fuga. Era uma sala escondida
que dava exatamente para o aposento de conferências. Deparou-se com uma figura
peculiar: parecia-se com um elfo, mas sua pele era escura, seus cabelos eram
prateados e seus olhos brilhavam com uma malícia palpável. Observou seu mestre.
Os anos de profundo estudo sobre suas feições e modos revelaram uma verdade chocante: Lorde Aldaren
estava com medo. Tinha pavor do demonologista.
Scarlett
esforçava-se para ouvir o teor da conversa, mas os homens estavam muito
distantes de sua posição. Percebia, no entanto, que as palavras eram ameaças.
Elas aumentavam em intensidade a cada minuto, até que a pressão fez Aldaren
agir. Houve um estrondo e o estranho encontrou-se em meio às chamas conjuradas
pelo anfitrião. O elfo escuro grunhiu imprecações e dissipou a magia, sem muito
esforço.
O
júbilo que Scarlett sentiu ao notar a expressão de desespero em seu senhor
durou poucos segundos. Um fogo negro surgiu do chão, para abraçar a figura outrora
intocável, inatingível e indestrutível. Ali, seu mestre não era nada além de
uma tocha humana, agonizante, capaz de berrar tão alto quanto as vítimas de
suas torturas.
A
meio-elfa, sem tempo para comemorar qualquer vitória e com um senso de urgência
pulsante, deixou o lugar, temerosa por sua vida. Foi quando o demonologista
materializou-se em sua frente, portando uma mão humana com esquisita
naturalidade.
Milady,
poderia me dizer onde fica a sala de tesouros? Lorde Aldaren teve a bondade de
aceitar abrir a porta para mim – Indicou
a mão. - mas o restante dele está um
tanto ocupado no momento.
Scarlett
passou as coordenadas da sala, incrédula, apenas para ver o elfo acenando e
sorrindo antes de se dissipar em fumaça.
***
Aquele
foi um longo dia. Tão logo constatou que Lorde Aldaren consistia meramente em
uma pilha de cinzas, Scarlett tratou de libertar os prisioneiros e intimidar os
que ainda eram leais à autoridade do mestre. Olhou os portões abertos, um
convite à tão sonhada liberdade...
Então
virou-se para o castelo e trancou o portão por dentro. Havia uma biblioteca
inteira para ser estudada.
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Scarlett, a bruxa. |
Observações e Curiosidades:
1) A mãe de Scarlett detestava a cor dos cabelos
da filha, que eram negros como a penugem dos corvos (provavelmente porque a
menina herdou os cabelos do pai). Por isso, fazia com que as aias pintassem
constantemente os fios da menina com uma tonalidade avermelhada
2) Com o tempo, Scarlett passou a acreditar na
teoria do banimento por parte de sua mãe. Ela sequer descartou a possibilidade
de ter sido enviada diretamente para Aldaren, embora ele nada tenha mencionado
a respeito. Todavia, essa pode não ser a realidade dos fatos. Existe a chance
de que o Oráculo tenha afastado a filha para protegê-la. Talvez tenha previsto
uma invasão inevitável. Ou quem sabe tenha desejado defender a filha de si
mesma e de seus companheiros no templo. Afinal, eu nunca disse que eles eram os
“mocinhos” da estória.
3) Scarlett anulou-se como pessoa para
poder viver sob as ordens de Aldaren sem
enlouquecer. Parte do comportamento assumido durante esses anos, no entanto,
passou a fazer parte da sua real personalidade.
4) Scarlett quase realizou o pacto estelar, mas
a morte de seu senhor a impediu. Depois dos últimos acontecimentos, ela deixou
os conhecimentos astrológicos de lado, pois, internamente, repudiava tudo o que
vinha do homem. A Demonologia, por outro lado, seduziu-a por inteiro, tanto com
vislumbres de tratados sobre o assunto durante seus estudos quanto com a
demonstração, em primeira mão, do poderoso drow.
5) Dizem que seu nome lhe foi dado pela aia
Dora, humana já de certa idade que trabalhava no templo. Ela foi responsável
por grande parte dos cuidados com a menina e tem, provavelmente, mais
importância para Scarlett que sua própria mãe.
6) Apesar de guardar decepções e amarguras em
relação ao Oráculo, intimamente guarda o desejo de retornar para a floresta
dourada.
7) Nas fases principais de sua existência, ou
Scarlett viveu em uma floresta longínqua ou esteve presa no castelo de um bruxo
insano. Por isso, seu convívio numa sociedade normal é basicamente nenhum. Tudo
o que sabe foi fruto de pesada instrução e de exaustiva leitura. Dessa forma,
não faz ideia do que é ser meio-elfa numa sociedade humana, já que sua
convivência realizou-se em microcosmos fechados e nunca houve muito alarde
sobre sua miscigenação.
8) Scarlett, após certificar-se de que o drow já
havia partido, explorou a propriedade para fazer uma avaliação acerca dos itens
levados e deixados. Concluiu que o drow levara tudo o que existia na sala de
tesouros. Ele também não deixou a biblioteca intocada. Scarlett notou a falta
do “livro proibido”, que era guardado com o zelo mais exagerado por Aldaren.
9) Após dias de frenética leitura na biblioteca,
sem comer ou dormir, Scarlett decidiu que era hora de deixar o castelo. Sua
intuição lhe dizia que, em pouco tempo, a fortaleza não seria mais um refúgio
seguro.
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